A artilharia pesada de Ampuero

“As pessoas não são capazes de ver a si mesmas e esse é o princípio de todos os horrores” (do conto “Coro”).

Marcio Sales Saraiva

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Peguei o livro “Rinha de Galos” (Belo Horizonte, MG: Moinhos, 2021, 112 p.), da jornalista e escritora equatoriana María Fernanda Ampuero, e li, para a minha esposa, o primeiro conto, chamado “Galos”.

“Depois eu já não chorava ao ver as tripas quentes do galo perdedor se misturando ao pó. Era eu quem recolhia aquela bola de penas e vísceras e a levava à lata de lixo. Eu lhes dizia: adeus, galinho, seja feliz no céu onde há milhares de minhocas e campo e milho e famílias que amam os galinhos.”

A palavra “mulherzinha”, tal como o pai chamava a narradora-protagonista, repetia-se e doía.

No final do conto, minha esposa ficou em silêncio. Eu indaguei:

— Gostou? É de María Fernanda Ampuero.

Ela disse em tom severo:

— Prefiro não ler estas coisas horríveis. É melhor Caio Fernando Abreu.

Nos dias anteriores, estávamos lendo o primeiro livro de contos do Caio. Acho que ela não gostou nada de Ampuero e, por tabela, compreendi nas entrelinhas que ela estava me dizendo algo como “até o teu Caio Fernando Abreu é melhor que isso”.

Deixei-a de lado, respeitosamente, e continuei lendo, solitariamente, “Rinha de Galos”. É uma experiência tenebrosa. Um tremendo mal-estar me invadiu em diversos momentos. Senti raiva, questionei certos personagens, fiquei incomodado com as infindáveis baratas, os ataques às figuras paternas (aos homens em geral) e a desconstrução de duas passagens do Evangelho.

Por outro lado, se o livro me incomodou, creio!, é porque ele tem algo de valioso. A escrita é enxuta, seca, cortante como navalha. As palavras são duras, duríssimas, de um realismo que nos choca a sensibilidade. Se Freud revelou as entranhas nada angelicais da dinâmica sexual interna de uma família, Ampuero desnuda isso e esfrega na nossa cara, sem pudores. A família é algo monstruoso, um esconderijo de muitas atrocidades.

María Fernanda Ampuero

Depois de “Galos”, o conto “Monstros” segue a mesma pegada de sangue, terror e conflitos familiares.

“Papai e mamãe nos compravam bonecas e livros de contos de fada e nós recriávamos O exorcista com as bonecas e imaginávamos que o príncipe encantado era na realidade um vampiro que despertava Branca de Neve para convertê-la em morta-viva. Durante o dia tudo bem, éramos corajosas, mas à noite pedíamos a Narcisa que subisse para nos acompanhar. Papai não gostava que Narcisa — ele a chamava a doméstica — dormisse no nosso quarto, mas era inevitável: dizíamos que, se ela não viesse, nós é que desceríamos para dormir no quarto da doméstica. Isso, por exemplo, lhe dava medo. Mais que o demônio e os vampiros.”

Com a emprega doméstica Narcisa, a menina-narradora — sempre é a voz de uma criança ou jovem — aprende que é “preciso ter mais medo dos vivos que dos mortos”.

Em “Griselda”, uma orgulhosa boleira sofre nas mãos de sua própria filha.

Na sequência, o conto “Nam” nos fala do amor entre três pessoas, todas, de alguma forma, órfãs de família — mesmo quando os pais estão vivos!

“Eu a descubro e a olho inteira: tenho vontade de ser minúscula e de me enfiar por entre seus lábios entreabertos e viver dentro dela para sempre. Até o esmalte descascado que tem nas unhas dos pés me enternece, me desconcerta, me subjuga. Eu beijaria cada poro dela”, diz a jovem adolescente, devorando Diana.

“Com ela eu rio como se em minha casa não estivesse acontecendo nada, como se meu pai me amasse como um pai. Rio como se não fosse eu, mas uma menina que dorme feliz. Rio como se a brutalidade não existisse.”

Os pais, os homens, uns bostas! Todos!

“Do pai eu não sei nada. Também não pergunto. Nunca pergunto pelos pais.”

Em “Crias”, “(…) o cheiro [dele] é repugnante e ele tem o púbis sem pelos e o pau morto, mas continuo e continuo e continuo até que ele fica duro e continuo mais ainda, até que ele goza na minha boca e eu engulo aquilo que tem cheiro de mostarda Dijon e cloro”.

O amor pelo “monstro”, pelo “abjeto”, pelo “excluído” da sociedade de “bons costumes” e, claro!, “o pai os abandonou…”, são esses os frutos da família. E a salvação estava nos livros: “tinha descoberto os livros e, com eles, a deliciosa sensação de não precisar de nada nem de ninguém no mundo inteiro. Eu já não era uma menina estranha, mas uma menina leitora.”

Ela, a narradora, é submissa e reconhece isso (“porque sempre digo sim aos homens”), mas surpreende, choca, inverte o jogo.

O conto “Persianas” é sobre “algum desses tios de quem só se fala para se referir a uma característica de algum de meus primos ou minha. Parentes que um dia foram para a guerra ou para os Estados Unidos, de emigrantes, e não voltaram, ou que morreram na infância e deixaram de herança o nariz de Julio, as pernas tortas de María Teresa, minha gagueira. Ou nada. Gente que passou por esta família como passavam os empregados quando meu avô estava vivo: calados, cabisbaixos, sem interromper. Esses só são mencionados para dizer quantos filhos teve a bisavó, a tia Elsa, a madrinha Toya ou a avó e quantos morreram”.

Há gente assim em sua família?

O amor entre esses jovens “órfãos”, três primos, é de arrepiar o puritanismo nosso de cada dia.

“Aqui, numa noite de tempestade de verão, dentro da piscina, María Teresa me beijou na boca, contou a Julio e ele, que primeiro nos chamou de porcos, vocês me dão nojo, também quis. Nós três nos beijamos, ela no meio, beijando a mim e beijando a ele. (…) Voltamos a beijar nossas bocas molhadas e engilhadas e juramos

que nos amaríamos para sempre, que, quando fôssemos adultos, nos casaríamos. Os três. Que nunca haveria ninguém além de nós. Que seríamos melhores pais para nossos filhos, que nunca os abandonaríamos como meu pai, que nunca colocaríamos o trabalho acima de tudo como meu tio, que nunca viveríamos tão estupidamente como minha tia, que nunca seríamos tão tristes como minha mãe.”

Uma utopia poliamorosa e incestuosa contra os valores apodrecidos da “sagrada família” patriarcal e heteronormativa?

Aqui, neste conto “Persianas”, o narrador é Felipe, o único narrador-masculino do livro, mas ele não está confortável: “Não gosto de ser homem. Não se pode ser outra coisa?”

Felipe é incestuosamente apaixonado pela mãe. Seja forte e leia este conto até o fim.

Não creio que você chegará até aqui, mas o próximo conto, “Cristo”, é sobre milagres. Não se anime, é duro, duríssimo.

Em “Paixão”, abandono e ressurreição e novo abandono. “Encolhida no chão, você parece uma trouxa que algum mendigo largou aí, sem temer que o roubassem porque não há nada de valor nesse saco sujo. É você”.

Não escrevo mais, pois temo antecipar. Se você aguentar o tranco, segue a leitura. Falta pouco para terminar o livro e, provavelmente, você se angustiará, se é que chegará ao conto seguinte, “Luto”, onde a velha história de Jesus, Marta e Maria é recontada sob a ótica feminina.

Lázaro deveria permanecer no Hades. Baratas, violências e estupros. Monstruosidades sádicas em nome da fé (“o mais doentio dos sentimentos”) e de uma santa pureza. Ele “havia maltratado e penetrado pelo ânus e pela vagina e torturado, ele que se dizia puro, que se dizia homem de deus, que era amigo querido daquele, o mais santo dos santos, aquele que quando vinha à casa deixava tudo em alvoroço e do qual Maria lavava os pés empoeirados e calosos com perfumes exóticos, divinos, únicos”.

“Ali” é o próximo conto, sobre a “excêntrica, excêntrica até na generosidade”. Racismo, abuso, ódio ao pai, incesto, relações trabalhistas escravocratas.

“As pessoas veem os outros e não sabem o que se passa por trás das portas da sua casa”, diz a personagem de Ampuero. Ou teria sido Freud?

No conto “Coro”, sobre Natividad Corozo, outra doméstica, a denúncia sobre a fofoca.

“Falam, desatam goelas que limpam com guardanapos de linho, a respeito daquela que foi infiel, de uma criança fora do casamento, de um gay no armário, da que ostenta uma cirurgia plástica, de um marido falido, daquela que engordou demais, e não param até que a pessoa fica exangue, vazia, pura carcaça, no chão de porcelanato. Então lançam-na à pilha de cadáveres que há em todas essas salas climatizadas. E passam à pessoa seguinte. Isso se chama cafezinho, inauguração da casa, aniversário, dia de piscina, velório. Isso se chama reunião.”

“Cloro” é o penúltimo conto e, talvez, você já abandonou o livro ou ainda resiste, insiste em ler, quer saber mais sobre essa coisa brutal chamada família e suas entranhas íntimas, suas hipócritas relações sociais.

Desta vez, “Cloro” trata de piscina e da solidão de uma mulher rica. Apresenta uma linguagem mais próxima da prosa poética. Ampuero pegou mais leve e lembrou-me Clarice Lispector.

Fechando o livro, “Outra”. Novamente a paquiderme submissão feminina aos maridos, mas o final será outro:

“Na fila do mercado. Compra o que o marido exige como dele, deixa de lado o desejo das crianças, comprar o mais vagabundo para ela, o dinheiro é curto. Ninguém pode, na casa, pegar nada dele na geladeira dele. A esposa, no mercado, “(…) pegou as tripas e o amendoim para fazer guata para ele, o Coffee-Mate que ele leva para o escritório, os Kleenex de seu carro, sua revista Estadio, as favas fritas para ver o jogo de futebol, o maracujá para fazer seu suco. (…) As sardinhas, as cervejas, as tripas, as favas, as alcachofras filhas da puta, os iogurtes de merda, o maldito Coffee-Mate, o maracujá melequento e a revista Estadio com todos os putos jogadores do Barcelona e do Emelec, cada um pior que o outro.”

Duvido que você tenha lido esses meus rabiscos, mas se chegou até aqui, quem sabe?, creio que você terá condições para entrar nessa “Rinha de Galo” armada com tanto carinho e sordidez pela brilhante María Fernanda Ampuero, que teve este seu trabalho reconhecido na lista dos dez mais importantes livros da América Latina em 2008, no New York Times. Antes de ler, prepare-se! Não é um livro para almas adocicadas e, cuidado!, poderá conter gatilhos para quem sofre de algum transtorno psíquico.

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Marcio Sales Saraiva é autor do livro Engenho de Dentro e outros contos de aprendiz (Rio de Janeiro: Mundo Contemporâneo, 2019).

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Marcio Sales Saraiva

Ciência política, sociologia, literatura, filosofia, psicologias e bobagens.