A síntese do espiritismo religioso brasileiro
O livro “O Consolador”, psicografado por Chico Xavier e ditado pelo espírito Emmanuel, foi lançado em 1940. Ele representa um marco importante no híbrido religioso que é o espiritismo brasileiro. Nele, Emmanuel irá reforçar alguns aspectos centrais do misticismo religioso e traduzirá, ainda que de forma indireta, algumas teses que estavam explícitas na obra “Os quatro evangelhos” de J.-B. Roustaing, tão criticada e tão pouco lida.
“O Consolador” não é um livro de grande vendagem, mas é muito conhecido do público espírita brasileiro e é um material vastamente usado por palestrantes e dirigentes de grupos espíritas. Nesse sentido, não seria exagero dizer que este livro de 1940 ajudou a formatar a cosmovisão espírita brasileira depois do seu período de fundação nacional (século XIX e início do XX) com Bezerra de Menezes na vanguarda do processo.
Um dos aspectos mais relevantes do livro é a tese do triângulo, que alguns juram ser de Allan Kardec, mas é de Emmanuel. Para o sábio jesuíta, o espiritismo seria um triângulo onde na base estariam os aspectos científicos e filosóficos e no cume o aspecto religioso, o mais importante de todos. Ele expressa isso com clareza:
“No seu aspecto científico e filosófico, a Doutrina [espírita] será sempre um campo nobre de investigações humanas, como outros movimentos coletivos, de natureza intelectual, que visam ao aperfeiçoamento da humanidade. No aspecto religioso, todavia, repousa a sua grandeza divina, por constituir a restauração do Evangelho de Jesus Cristo, estabelecendo a renovação definitiva do homem, para a grandeza do seu imenso futuro espiritual.”
Esta ênfase no aspecto religioso, na transformação moral do crente, é algo que irá marcar o espiritismo brasileiro, distanciando-o do espiritismo francês kardequiano, mais preocupado com as pesquisas científicas da época e seus desdobramentos filosóficos, em especial, o sentido da existência. Além disso, quem estuda o espiritismo sabe o quanto Allan Kardec tinha problemas com a palavra religião aplicada ao espiritismo e, não por acaso, negou seu uso em diversas ocasiões.
É preciso contextualizar, pois religião é cultura. A pergunta que sempre me faço é se o espiritismo brasileiro não fosse esse híbrido religioso (católico em alguns sentidos, protestante em outros), será que ele teria a força que tem na sociedade brasileira? Um “espiritismo puro”, kardequiano, com ênfase científica e filosófica, teria prosperado nesta Terra de Santa Cruz? São questões para pensarmos, mas voltemos ao livro, “O Consolador”, título que já traduz uma filiação cristã, bíblica e profética.
O livro foi dividido em três grandes blocos com perguntas e respostas. O primeiro bloco é sobre Ciência, o segundo trata de Filosofia (em sentido amplíssimo!) e por último o aspecto Religioso. Nele encontramos os elementos fundamentais da cosmovisão religiosa do espiritismo brasileiro. Vejamos no bloco “Ciência”. Diz Emmanuel:
“(…) a ciência do mundo, se não deseja continuar no papel de comparsa da tirania e da destruição, tem absoluta necessidade do Espiritismo, cuja finalidade divina é a iluminação dos sentimentos, na sagrada melhoria das características morais do homem.”
Percebem aqui uma inversão?
Se no espiritismo kardequiano devemos seguir a ciência sempre que a mesma provar que o espiritismo está equivocado, no brasileiro é a ciência que deve seguir o espiritismo, é ela que “necessita” do espiritismo como uma espécie de “baliza moral” se não quer ficar como “comparsa da tirania e da destruição”. No século XX, Emmanuel já demonstrava a decepção com os avanços tecnológicos e científicos a serviço do lucro, da guerra e da destruição em massa, algo que Kardec não vira com seus olhos em vida. Kardec é um iluminista otimista com o progresso científico, Emmanuel é cético e mais crítico. Diz o guia de Chico Xavier:
“Todas as teorias evolucionistas no orbe terrestre caminham para a aproximação com as verdades do Espiritismo, no abraço final com a Verdade suprema.”
Emmanuel vincula o evolucionismo com o espiritismo entendendo que o mesmo está próximo das verdades que o espiritismo traz ao mundo físico. Kardec, na minha leitura, não chegou a tanto, mas estamos falando de séculos diferentes. Por outro lado, o elogio ao socialismo em 1940 é ousado em Emmanuel. Diz ele:
“O Socialismo é uma bela expressão de cultura humana, enquanto não resvala para os polos do extremismo.”
Podemos entender esse “extremismo” como os movimentos revolucionários de esquerda, mas ainda assim, Emmanuel considera a ideia de socialismo “uma bela expressão da cultura humana” o que não é pouca coisa em tempos de Estado Novo varguista e ascensão nazifascista no mundo que, por sinal, será indiretamente condenada por Emmanuel:
“(…) a política do racismo deve ser encarada como erro grave, que pretexto algum justifica, porquanto não pode apresentar base séria nas suas alegações, que mal encobrem o propósito nefasto de tirania e separatividade.”
É provável que esta passagem seja uma indireta para os nazifascistas que chegavam ao poder, ainda que seja importante para demarcar um campo político no Brasil: o espiritismo deve ser antirracista.
Não é de se estranhar que Emmanuel faça uma defesa radical do pacifismo, ainda que com um tom gradualista, condenando qualquer ação violenta como grupos de extermínio, milícias, linchamentos, torturas e até mesmo o assassinato de animais. Vejamos o que diz:
“À medida que evolverdes no sentimento evangélico, compreendereis que todos os matadores se encontram em oposição ao texto sagrado. No grau dos vossos conhecimentos atuais, entendeis que somente os assassinos que matam por perversidade estão contra a Lei divina. Quando avançardes mais no caminho, aperfeiçoando o aparelho social, não tolerareis o carrasco, e, quando estiverdes mais espiritualizados, enxergando nos animais os irmãos inferiores de vossa vida, a classe dos caçadores não terá razão de ser.”
Se de um lado Emmanuel elogia o socialismo, a luta antirracista e o pacifismo, em 1940, por outro lado, o nosso jesuíta sucumbe ao machismo mais reacionário, dizendo que:
“A ideologia feminista dos tempos modernos, porém, com as suas diversas bandeiras políticas e sociais, pode ser um veneno para a mulher desavisada dos seus grandes deveres espirituais na face da Terra. Se existe um feminismo legítimo, esse deve ser o da reeducação da mulher para o lar, nunca para uma ação contraproducente fora dele.”
O lugar da mulher é em casa, cuidando do lar e, no máximo, na casa espírita, pois Emmanuel elogia as mulheres como médiuns.
A visão de saúde é avançada para a época:
“Para o homem da Terra, a saúde pode significar o equilíbrio perfeito dos órgãos materiais; para o plano espiritual, todavia, a saúde é a perfeita harmonia da alma, para obtenção da qual, muitas vezes, há necessidade da contribuição preciosa das moléstias e deficiências transitórias da Terra.”
Em outras palavras, o espiritismo emmanuelino nos diz que saúde não é ausência de doença, mas harmonia interior, paz na alma. Há elementos nitidamente estoicos nessa concepção? Penso que sim. O estoicismo e o espiritismo religioso brasileiro estão em absoluta sintonia em diversos pontos que, nesse espaço, não irei explorar.
Retomando o tema da saúde, Emmanuel dirá que “a assistência farmacêutica do mundo não pode remover as causas transcendentes do caráter mórbido dos indivíduos. O remédio eficaz está na ação do próprio Espírito enfermiço”, ou seja, há coisas que os remédios mais avançados não podem fazer: a transformação moral e vibratória do doente. E este último aspecto é fundamental para a saúde. Há pesquisas no campo da psicologia transpessoal que apontam nesta direção, mas o dado interessante é perceber que o espiritismo religioso brasileiro, desde o século XIX com a homeopatia, estará buscando formas alternativas de tratamento que não seja meramente reproduzir a alopatia e as fórmulas tradicionais da medicina. Não por acaso, Emmanuel irá falar bem das benzedeiras, algo que seria impensável ao sisudo e cético Kardec.
“As chamadas “benzeduras”, tão comuns no ambiente popular, sempre que empregadas na caridade, são expressões humildes do passe regenerador, vulgarizado nas instituições espíritas de socorro e de assistência. Jesus nos deu a primeira lição nesse sentido, impondo as mãos divinas sobre os enfermos e sofredores, no que foi seguido pelos apóstolos do Cristianismo primitivo. “Toda boa dádiva e dom perfeito vêm do Alto” — dizia o apóstolo, na profundeza de suas explanações. A prática do bem pode assumir as fórmulas mais diversas. Sua essência, porém, é sempre a mesma diante do Senhor.”
As fórmulas do bem são diversas, o importante é sua essência: cura e bem-estar. Este pragmatismo de Emmanuel é interessante, mas isso não quer dizer que suas opiniões sejam sempre progressistas ou abertas para a contemporaneidade. Há dimensões “conservadoras” em Emmanuel e não só na questão da mulher: ele é contra a eutanásia em qualquer formato e contra a educação sexual nas escolas onde há crianças. Diz o nosso jesuíta:
“O homem não tem o direito de praticar a eutanásia, em caso algum, ainda que a mesma seja a demonstração aparente de medida benfazeja.”
“A melhor escola ainda é o lar, onde a criatura deve receber as bases do sentimento e do caráter. Os estabelecimentos de ensino, propriamente do mundo, podem instruir, mas só o instituto da família pode educar. [E] atendendo às circunstâncias das posições evolutivas, consideramos que os pais são os mestres da educação sexual de seus filhos, indicados naturalmente para essa tarefa, até que o orbe possua, por toda parte, as verdadeiras escolas de Jesus.”
Há muitas outras questões neste primeiro bloco (“Ciência”), mas destaquei algumas para em seguida entrarmos no segundo bloco do livro. A filosofia. Nele, Emmanuel reconhece as “poderosas influências” das estruturas socioeconômicas sobre a personalidade humana, portanto, a luta espírita deve envolver as melhorias das “condições materiais e morais” da sociedade. Dito isso em 1940, é um avanço importante contra as concepções alienadoras de uma religiosidade intimista, omissa e fechada em si mesma. Diz Emmanuel:
“O meio ambiente em que a alma renasceu, muitas vezes constitui a prova expiatória; com poderosas influências sobre a personalidade, faz-se indispensável que o coração esclarecido coopere na sua transformação para o bem, melhorando e elevando as condições materiais e morais de todos os que vivem na sua zona de influenciação.”
A crítica ao “imediatismo puritano” dos que querem alcançar o céu em apenas uma única encarnação é também um dado interessante. Herculano Pires, mais tarde, dirá algo semelhante sobre os que desejam virar anjo da noite para o dia. Diz aqui Emmanuel:
“O crente deve esforçar-se o mais possível, mas, de modo algum, deve nutrir a pretensão de atingir a superioridade espiritual completa, de uma só vez, porquanto a vida humana é aprendizado de lutas purificadoras.”
Hoje, ser vegetariano ou vegano é chique, mas pensem em 1940, no século passado, no Brasil, o mentor espiritual de Chico Xavier dizer isso aqui:
“A ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências, do qual derivaram numerosos vícios da nutrição humana. É de lastimar semelhante situação, mesmo porque, se o estado de materialidade da criatura exige a cooperação de determinadas vitaminas, esses valores nutritivos podem ser encontrados nos produtos de origem vegetal, sem a necessidade absoluta dos matadouros e frigoríficos.”
Uau! É no mínimo ousado comprar briga com a poderosíssima indústria de alimentos, em pleno Estado Novo varguista, e defender o fim da matança de animais para consumo humano.
Mas Emmanuel surpreende ainda mais ao defender a astrologia como algo razoável. Veja na questão 140 de “O Consolador”:
“Os astros influenciam igualmente na vida do homem?
— As antigas assertivas astrológicas têm a sua razão de ser. O campo magnético e as conjunções dos planetas influenciam no complexo celular do homem físico, em sua formação orgânica e em seu nascimento na Terra; porém, a existência planetária é sinônimo de luta. Se as influências astrais não favorecem a determinadas criaturas, urge que estas lutem contra os elementos perturbadores, porque, acima de todas as verdades astrológicas, temos o Evangelho, e este nos ensina que cada qual receberá por suas obras, achando- se cada homem sob as influências que merece.”
O Evangelho está acima de todas as “verdades astrológicas”, mas é uma afirmação bastante “moderninha” para Emmanuel em 1940. Por outro lado, ele vetará a cartomancia dentro do espiritismo brasileiro, tido como “espiritismo evangélico”.
“A cartomancia pode enquadrar-se nos fenômenos psíquicos, mas não no Espiritismo evangélico, onde o cristão deve cultivar os valores do seu mundo íntimo pela fé viva e pelo amor no coração, buscando servir a Jesus no santuário de sua alma, não tendo outra vontade que não aquela de se elevar ao seu amor pelo trabalho e iluminação de si mesmo, sem qualquer preocupação pelos acontecimentos nocivos que se foram, ou pelos fatos que hão de vir, na sugestão nem sempre sincera dos que devassam o mundo oculto.”
Em outros momentos, Emmanuel se mostra bastante predestinacionista, algo que lembra muito Santo Agostinho e Calvino. Por exemplo, no instante da morte. Ele diz: “com exceção do suicídio, todos os casos de desencarnação são determinados previamente pelas forças espirituais que orientam a atividade do homem sobre a Terra.” Todos os casos! Porque “o acaso, propriamente considerado, não pode entrar nas cogitações do sincero discípulo da verdade evangélica.”
Se todas as mortes não são por acaso, mas fruto de uma predestinação das leis divinas, o suicídio será uma afronta, uma afirmação de liberdade contra o destino, uma rebelião. Dirá Emmanuel:
“De todos os desvios da vida humana o suicídio é, talvez, o maior deles pela sua característica de falso heroísmo, de negação absoluta da lei do amor e de suprema rebeldia à vontade de Deus, cuja Justiça nunca se fez sentir, junto dos homens, sem a Luz da Misericórdia.”
Esta posição fará do espiritismo brasileiro um baluarte na luta contra o suicídio, engajando-se em programas e campanhas de esclarecimento, voluntariando-se nos Centros de Valorização da Vida (CVV) etc.
Reafirmando sua ênfase religiosa e mística, Emmanuel dirá que a evolução de todos os Espíritos está marcada por dois mecanismos. De um lado, os sentimentos, os afetos, as questões morais. De outro, a sabedoria, o conhecimento, a ciência das coisas. Qual deles é o principal mecanismo de evolução?
“O sentimento e a sabedoria são as duas asas com que a alma se elevará para a perfeição infinita. (…) ambos são imprescindíveis ao progresso, sendo justo, porém, considerar a superioridade do primeiro sobre o segundo, porquanto a parte intelectual sem a moral pode oferecer numerosas perspectivas de queda, na repetição das experiências, enquanto o avanço moral jamais será excessivo, representando o núcleo mais importante das energias evolutivas.”
Em outras palavras, para Emmanuel, mais vale um burro moralmente elevado do que um grande intelectual devasso e sem nenhum sentimento de compaixão ou caridade. Esta concepção será fundamental para entender a entrada gradual do espiritismo nas camadas populares das grandes cidades, ainda que esta relação seja sempre tensa por conta do “hierarquismo do assistencialismo”, mas isso é tema para outro momento.
Sendo predestinacionista em muitos aspectos, Emmanuel não dará importância a propaganda e ao marketing na divulgação do espiritismo. Ele sabe que a “verdade” do espiritismo irá triunfar natural e espontaneamente. É questão de tempo. Diz o mentor:
“A verdade triunfa por si, sem o concurso das frágeis possibilidades humanas. Alma alguma deverá procurá-la supondo-se elemento indispensável à sua vitória. Como seu órgão no planeta, o Espiritismo não necessita de determinados homens para consolar e instruir as criaturas, depreendendo-se que os próprios intelectuais do mundo é que devem buscar, espontaneamente, na fonte de conhecimentos doutrinários, o benefício de sua iluminação.”
Semelhante ao que disse sobre a ciência, Emmanuel diz que são os intelectuais que dependem do espiritismo para “sua iluminação” e não este precisa de intelectuais e gente famosa para fazer mais prosélitos neste mundo. É neste segundo bloco do livro que Emmanuel formula a grande invertida do espiritismo brasileiro sobre o “filosofismo” dos franceses, dizendo que “a obra definitiva do Espiritismo é a da edificação da consciência profunda no Evangelho de Jesus Cristo”, ou seja, “só o trabalho de autoevangelização é firme e imperecível. Só o esforço individual no Evangelho de Jesus pode iluminar, engrandecer e redimir o Espírito, porquanto, depois de vossa edificação com o exemplo do Mestre, alcançareis aquela verdade que vos fará livres.”
Confrontando os que defendiam uma posição laica para o espiritismo em 1940, dirá Emmanuel com toda a força:
“O Espiritismo, sem Evangelho, pode alcançar as melhores expressões de nobreza, mas não passará de atividade destinada a modificar-se ou desaparecer, como todos os elementos transitórios do mundo. E o espírita que não cogitou da sua iluminação com Jesus Cristo pode ser um cientista e um filósofo, com as mais elevadas aquisições intelectuais, mas estará sem leme e sem roteiro no instante da tempestade inevitável da provação e da experiência, porque só o sentimento divino da fé pode arrebatar o homem das preocupações inferiores da Terra para os caminhos supremos dos paramos espirituais.”
O jesuíta está convencido que o espiritismo é de matriz evangélica, é a realização da promessa do Consolador, mais ainda, ele está convencido que sem “o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” — expressão comum ao roustenguismo da época — não haverá espiritismo, ele desaparecerá, pois só a fé pode “arrebatar” o ser humano para as esferas mais altas da espiritualidade. A fé, não a razão, é o centro do espiritismo popular brasileiro. E o trabalho evolutivo é sempre pessoal:
“A palavra do guia é agradável e amiga, mas o trabalho de iluminação pertence a cada um. (…) A alma, aqui ou alhures, receberá sempre de acordo com o trabalho da edificação de si mesma. É o próprio Espírito que inventa o seu Inferno ou cria as belezas do seu Céu.”
Fechando este segundo bloco, Emmanuel traz um dos pontos mais polêmicos. Jesus como espírito imaculado, sem pecado, governador do planeta Terra — Kardec nunca disse isso! — e um Espírito puro que não traz em si as “quedas do passado” que caracterizam a espécie humana. Esta teoria da queda é bíblica, mas também será defendida por J.-B. Roustaing e Pietro Ubaldi. Emmanuel chancela, dizendo o seguinte:
“Todas as entidades espirituais encarnadas no orbe terrestre são Espíritos que se resgatam ou aprendem nas experiências humanas, após as quedas do passado, com exceção de Jesus Cristo, fundamento de toda a verdade neste mundo, cuja evolução se verificou em linha reta para Deus, e em cujas mãos angélicas repousa o governo espiritual do planeta, desde os seus primórdios.”
Percebam que as teses centrais do espiritismo religioso brasileiro estão todas elas sintetizadas nesse livro, “O Consolador”.
Para terminar, o terceiro e último bloco do livro, tratando daquilo que é o essencial na visão emmanuelina: a Religião. Diz ele:
“Religião é o sentimento divino, cujas exteriorizações são sempre o Amor, nas expressões mais sublimes. Enquanto a Ciência e a Filosofia operam o trabalho da experimentação e do raciocínio, a Religião edifica e ilumina os sentimentos. As primeiras se irmanam na sabedoria, a segunda personifica o amor, as duas asas divinas com que a alma humana penetrará, um dia, nos pórticos sagrados da espiritualidade.”
Não são poucas as vezes que Emmanuel faz críticas ao catolicismo romano e ao literalismo bíblico dos protestantes.
“Os novos discípulos do Evangelho devem compreender que os dogmas passaram. E as religiões literalistas, que os construíram, sempre o fizeram simplesmente em obediência a disposições políticas, no governo das massas. Dentro das novas expressões evolutivas, porém, os espíritas devem evitar as expressões dogmáticas, compreendendo que a Doutrina é progressiva, esquivando- se a qualquer pretensão de infalibilidade, em face da grandeza inultrapassável do Evangelho.”
Em outra passagem, ele diz que “o Catolicismo se reduziu a uma força respeitável, mas puramente humana, distante do reino de Jesus” e cabe ao espiritismo resgatar esse Jesus esquecido. Diz o mentor:
“Moisés trouxe a missão da Justiça; o Evangelho, a revelação insuperável do Amor, e o Espiritismo, em sua feição de Cristianismo redivivo, traz, por sua vez, a sublime tarefa da Verdade. No centro das três revelações encontra- se Jesus Cristo, como o fundamento de toda a luz e de toda a sabedoria.”
Emmanuel reforça a concepção kardequiana de que o espiritismo é mais um elo na cadeia de revelações divinas que começa com os dez mandamentos trazidos pelo judeu Moisés, as boas novas de Jesus e o Consolador que seria a falange dos Santos Espíritos a dar testemunho da verdade das revelações judaico-cristãs e ampliar seu entendimento, corrigindo rumos hermenêuticos equivocados.
“O Espiritismo evangélico é o Consolador prometido por Jesus, que, pela voz dos seres redimidos, espalham as luzes divinas por toda a Terra, restabelecendo a verdade e levantando o véu que cobre os ensinamentos na sua feição de Cristianismo redivivo, a fim de que os homens despertem para a era grandiosa da compreensão espiritual com o Cristo.”
Isso não quer dizer que Emmanuel não reconheça que, fora da tradição judaico-cristã, a Divindade enviou espíritos luminosos para guiar e esclarecer a humanidade, mas seu cristocentrismo é evidente. Diz ele:
“Além dos ensinamentos legados por um Elias ou um Jeremias, temos de convir que numerosos missionários do plano superior precederam a vinda do Cristo, distribuindo no mundo o pão espiritual de suas verdades eternas. Um Shakyamuni [Buda], um Confúcio, um Sócrates foram igualmente profetas do Senhor, na gloriosa preparação dos seus caminhos.”
Como um jesuíta exemplar, Emmanuel não poderia deixar de recomendar a leitura da Bíblia em família como fundamental exercício espiritual. Kardec, de fato, reconhecia que o espiritismo nos dá uma “chave de compreensão” das Escrituras Sagradas, mas não teria chegado a tanto. Diz Emmanuel:
“Essa leitura [da Bíblia] é sempre útil, e quando não produz a paz imediata, em vista da heterogeneidade de condições espirituais daqueles que a ouvem em conjunto, constitui sempre proveitosa sementeira evangélica, extensiva às entidades do plano invisível, que a assistem, sendo lícito esperar mais tarde o seu florescimento e frutificação.”
É neste último bloco do livro que Emmanuel compra uma “briga” com a Federação Espírita Brasileira ao insistir na tese de que existem “almas gêmeas”.
“No sagrado mistério da vida, cada coração possui no Infinito a alma gêmea da sua, companheira divina para a viagem à gloriosa imortalidade. Criadas umas para as outras, as almas gêmeas se buscam, sempre que separadas. A união perene é- lhes a aspiração suprema e indefinível. (…) O amor das almas gêmeas, em suma, é aquele que o Espírito, um dia, sentirá pela humanidade inteira.”
Há uma nota de rodapé onde a FEB apresenta o argumento contrário de Allan Kardec, mas deixa ao leitor a liberdade de aceitar ou não esta tese emmanuelina no espiritismo.
Não é de espantar que Emmanuel, a exemplo do seu médium, defenda o celibato sexual, mas não como obrigação eclesiástica, e sim como escolha livre da alma. Diz ele:
“Quase sempre, os que na Terra se fazem eunucos para os reinos do céu, agem de acordo com os dispositivos sagrados de missões redentoras, nas quais, pelo sacrifício e pela dedicação, se redimem entes amados ou a alma gêmea da sua, exilados nos caminhos expiatórios. Numerosos Espíritos recebem de Jesus permissão para esse gênero de esforços santificantes, porquanto, nessa tarefa, os que se fazem eunucos, pelos reinos do céu, precipitam os processos de redenção do ser ou dos seres amados, submersos nas provas e, simultaneamente, pela sua condição de evolvidos, podem ser mais facilmente transformados, na Terra, em instrumentos da verdade e do bem, redundando o seu trabalho em benefícios inestimáveis para os entes queridos, para a coletividade e para si próprios.”
Para finalizar esta breve resenha, pois o livro é longo em questões, Emmanuel faz outra invertida no pensamento kardequiano ao defender o fim das evocações dos Espíritos. As manifestações mediúnicas devem ser espontâneas, sempre. Fazendo coro com o que dirá seu médium: “o telefone toca de lá para cá”, ou seja, nós não podemos fazer ligações daqui para lá (o outro mundo). Diz Emmanuel:
“De modo algum se deverá provocar as manifestações mediúnicas, cuja legitimidade reside nas suas características de espontaneidade, mesmo porque o programa espiritual das sessões está com os mentores que as orientam do plano invisível, exigindo- se de cada estudioso a mais elevada porcentagem de esforço próprio na aquisição do conhecimento, porquanto o plano espiritual distribuirá sempre, de acordo com as necessidades e os méritos de cada um. Forçar o fenômeno mediúnico é tisnar uma fonte de água pura com a vasa das paixões egoísticas da Terra, ou com as suas injustificáveis inquietações. (…) Podereis objetar que Allan Kardec se interessou pela evocação direta, procedendo a realizações dessa natureza, mas precisamos ponderar, no seu esforço, a tarefa excepcional do Codificador, aliada a necessidades e méritos ainda distantes da esfera de atividade dos aprendizes comuns.”
O espiritismo brasileiro, de maneira geral, adotará a tese emmanuelina e abandonará as evocações típicas do espiritismo kardequiano.
O livro termina falando sobre médiuns e mediunidade, reafirmando a relação entre mediunismo e caridade, ponto central de diferenciação entre o espiritismo e outras religiosidades onde o dinheiro é aceito. Afirma Emmanuel.
“Seria justo aceitar remuneração financeira no exercício da mediunidade?
— Quando um médium se resolva a transformar suas faculdades em fonte de renda material, será melhor esquecer suas possibilidades psíquicas e não se aventurar pelo terreno delicado dos estudos espirituais. A remuneração financeira, no trato das questões profundas da alma, estabelece um comércio criminoso, do qual o médium deverá esperar no futuro os resgates mais dolorosos. A mediunidade não é ofício do mundo, e os Espíritos esclarecidos, na verdade e no bem, conhecem, mais que os seus irmãos da carne, as necessidades dos seus intermediários.”
Em outras palavras, sendo a mediunidade um dom do Alto, devemos dar de graça o que de graça recebemos. Esse será um ponto nevrálgico do espiritismo brasileiro.
Procurei fazer aqui os destaques que considerei relevantes nessa obra fundamental de Emmanuel/Chico Xavier para a compreensão do caráter do espiritismo híbrido brasileiro.
Ao escrever, procurei afastar-me de dois extremos. A (1) crítica leviana e sem respeito ao contexto e (2) a subordinação cega e fanática aos conteúdos psicografados. Espero que minha tarefa tenha sido satisfatória.